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O sentido deste texto

O arquitecto João Paulo Conceição (JPC), falecido no final de 2011, foi um notável estudioso, pedagogo, e investigador – além de, como profissional, ter concebido e realizado vários projectos significativos, dentre os quais sobressai como obra maior a Mesquita de Lisboa (1978-1991). Mas deve salientar-se, acima de tudo, atravessando as múltiplas actividades que desenvolveu, a intensa dimensão humana, deontológica, ética e fortemente solidária, por que sempre pautou a sua actuação – marcante, e que retemos, cimeira, na memória da sua figura.

Na verdade, o que a vida e obra de JPC significam – e deve ser absolutamente afirmado “agora”, num tempo de geral confusão e perda ou mutação de muitos dos nossos valores –, é exactamente a sua constante atitude aberta, voluntariosa e positiva, dentro de uma actividade plural, quer na profissão (homem de obras de colaboração, de participação em equipas e grupos, tanto em projecto de arquitectura como na investigação), quer na pedagogia e divulgação (docência, editorialismo). 

JPC foi sempre imbuído de um espírito empreendedor, de curiosidade e descoberta, a par de um sentido experimentalista, são e vigoroso: foi congregador e motivador, conseguindo “puxar para fora”, discreta mas plenamente, o melhor de todos, e foram muitos, com quem conviveu e trabalhou.

O tema e/ou a questão levantada pela sua prática de vida não é de somenos: entendemos  fundamental afirmar que, no exercício de uma qualquer qualificada actividade, criativa e profissional (neste caso, a Arquitectura), a dimensão intelectual tem de ser/deve ser, sempre, acompanhada da articulação forte com as muitas dimensões que completam a nossa vivência e a relação com os outros e com o mundo: um sentido de humanidade, uma sensibilidade afectiva, a percepção dos valores e a abertura aos problemas em presença, a solidariedade como modo de estar. Sem isso, a perfeição da obra criada, por bela, sólida e funcional que seja, será sempre um valor maculado, parcial e relativo.  

Que os arquitectos, actuais e futuros, possam ficar com uma ideia desta figura e do seu percurso, demasiado breve (e imperfeito, certamente, mas sempre coerente e forte), impregnado, ao mesmo tempo, dos referidos valores humanos, profissionais e solidários, é o objectivo, simples e claro, deste artigo. 


 

Breve cronologia de um percurso

Nasceu em Setúbal, em 1950, em meio familiar ligado tradicionalmente às actividades do mar, tomando desde cedo o gosto pelos objectos, mecanismos e temas afins. Passou a viver em Coimbra a partir de 1958, onde completou o ensino liceal; em 1969 participou na crise académica de Coimbra, ingressando seguidamente em Arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa – ESBAL (1969-1970), vindo a concluir o curso, atravessado por inúmeras crises, fruto da conjuntura politica e universitária, em 1976. 

Recorde-se, destas crises, em ritmo aproximadamente cronológico, o Enterro da Escola, simbólico happening, iniciativa dos alunos da ESBAL na sequela da crise universitária que atravessava o País; a “demissão colectiva” do grupo liderado pelo arquitecto Frederico George (que, no dizer de Keil do Amaral, tentava uma reforma modernizadora do ensino de Arquitectura, mas “tarde demais”), sufocado pela direcção de Joaquim Correia, durante o Ministério Veiga Simão, no final da “Primavera Marcelista”, em 1971-1972; o atravessar do deserto cultural e pedagógico em que a Escola descambou em 1973-1974, com a polícia, instalada no edifício vizinho, chamada pelos responsáveis escolares, prendendo alunos contestatários nos corredores do velho convento de São Francisco; o fim abrupto do curso de Arquitectura em Lisboa, com os alunos “organizados” irrompendo nas salas, expulsando os professores, logo a 26 de Abril de 1974, num desabafo da repressão anterior; a “experiência pedagógica” dos grupos autonomeados e organizados, entre RGA (Reunião Geral de Alunos) e intensas discussões políticas, em 1975, até à reinstalação de um novo Departamento de Arquitectura em 1976-1977. 

Trabalha no atelier de Keil do Amaral (1910-1975), com José Antunes da Silva (1928-1996) a partir de 1969 até 1977. A par deste trabalho, inicia projectos em artes gráficas, em 1973, e colabora com Walfredo Sangareau de la Cavalleria (até 1978). Dá-se nesta fase, também, o início da sua actividade profissional autónoma, como arquitecto-chefe no GAT/Gabinete Técnico Local de Seia, em 1975-1977. A partir de 1981 vive e trabalha entre Coimbra e Lisboa. Em 1983 participa na provocatória e polémica exposição Depois do Modernismo. Desde a mesma data lecciona (até 2010), na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (Arquitectura de Interiores, e também Restauro e Reabilitação de Interiores), bem como na Escola Superior de Educação de Coimbra. Em 1990-92 é monitor no Programa de Artes e Ofícios Tradicionais, no Curso dos Abobadilheiros em Serpa, em articulação com a Câmara Municipal. Em 1997, é convidado para leccionar na ARCA/Ensino Superior de Tecnologias Artísticas de Coimbra.

Em 1992 integrou a representação portuguesa na exposição em Madrid Límite del Mar (para a qual o autor destas linhas concebeu a Exposição de Arquitectura). Para o Catálogo dessa Exposição escolheu duas citações com as quais, de algum modo, se identificava: “É selvagem, é brutal inclusive, mas é são, é sincero e é nosso!” (Miguel Torga); “E é sempre o mesmo azul, o mesmo vórtice de queda, a mesma vertigem...” (Samuel Beckett). A mostra incluiu três obras de JPC, em co-autoria: a Mesquita de Lisboa, a filial da CGD de Cuba/Alentejo e o projecto da fábrica Fumamar para Setúbal.

Na exposição Il Portogallo del Mare, delle Pietre, delle Città/Portugal of Sea, Stone and Cities, que constituiu a participação portuguesa oficial na XIX Exposição Internacional de Arquitectura da Trienal de Milão de 1996 (que comissariei com a colaboração de João Vieira Caldas, em iniciativa do Ministério da Cultura), JPC está também representado, com o projecto da fábrica Fumamar, entretanto revisto (1991-1992, com Diogo Vieira), e apresentado com intenso cromatismo em desenhos e maqueta.  

O texto crítico de Alexandre Alves Costa, no catálogo da mostra, levanta a problemática motivadora a que o seu trabalho, olhado em conjunto, incitava, no quadro de várias novas propostas para  a cidade: 

 

Labirinto, em arquitectura, significa sucessão de espaços autónomos de insuspeitado carácter, caminho de surpresa em surpresa até ao fim do percurso de inimaginável efeito. [...] Em Portugal [...] o eixo dominante pode ser cortado por outros que desviam a sua regra, pondo em causa uma leitura unitária. Misturam-se, muitas vezes, racionalidades diferentes: as decorrentes das regras simbólicas ou litúrgicas dos espaços interiores podem opor-se a outras que recorrem às necessidades da inserção urbana ou paisagística. [...] Romper a racionalidade dominante, dar forma às flutuantes racionalidades, defender o direito à subjectividade, produzir manifestos, colocar-se até, do lado do mau gosto, dos maus costumes, das arquitecturas pobres ou das efémeras, das simbólicas ou das metafóricas, é um difícil caminhar em águas turvas só respeitável se suportado por uma grande pureza e uma nova ideologia fortemente activa e militante, atenta, e simultaneamente, agressiva e defensiva para que não se fique no limbo da irrequietude própria do artista com alta cotação no mercado. Os arquitectos [Manuel] Graça Dias e Egas [José] Vieira, [João] Santa Rita, João Paulo Conceição e [António] Marques Miguel, não constituem um grupo com alguma homogeneidade. São, em conjunto, um labirinto no labirinto de Lisboa.1 

 

Entre 1992 e 1996 concebe para o Centro Cultural de Belém as exposições Arquitecto Luís Barragán, casas acariciadoras/Arquitectura rural mexicana, Alvarez Bravo/Retrospectiva de fotografia, e, ainda, A magia da imagem/A viagem do pré-cinema, no quadro do AZIMUTE, em atelier com Diogo Vieira e Manuel Lacerda. 

Em 1998 funda a 9H-Arquitecturas Associadas Ldª, o “seu” atelier de arquitectura.

 

 

Alguns projectos e obras mais notáveis 

Na fase inicial da sua actividade profissional autónoma, JPC estreia-se com o primeiro lugar no concurso para a Mesquita de Lisboa2.

Entendemos hoje, passado um quarto de século, com o olhar permitido pela distância e sedimentação no tempo, que o projecto da Mesquita foi, em Lisboa, o mais potente, inovador e imaginativo representante de uma atitude projectual dentro da pós-modernidade, processo cultural que então internacionalmente germinava, na fase de transição dos anos 1970 para os inícios de 1980, antes da vulgata pós-modernista lisboeta, assente nos desvarios formalistas-consumistas, por outros autores, nos meados dos anos 1980, propalada em programas de comércio e de habitação massivos. 

A Mesquita de Lisboa decorre de uma atitude contida e sóbria, mas informada, pautada e provocada pelo programa, lido e recriado numa visão culturalista que, a partir dele, o projecto soube empreender. Foi, depois, concretizado em obra num monumento que explorou bem a dimensão paisagística de uma localização ingrata, em encosta a norte, quase subúrbica. É um edifício homogéneo e expressivo, nas formas, cores e texturas, garantido pelo restrito leque de materiais orgânicos e assumidos que incluiu – sem cedência, quer a um populismo neo-vernáculo quer a um tecnologismo efusivo e retórico – os dois perigos que rondariam a iniciativa.

A Mesquita de Lisboa ficou sempre uma obra incompleta, em relação ao conjunto inicialmente concebido; de tempos a tempos é ameaçada por alterações espúrias ou menos controladas, mas, muito pela força do projecto inicial, tem mantido sempre uma personalidade de lugar, de corpo e de forma.

 

O repto aliciante de produzir um objecto fora dos nossos modelos referenciais é tanto mais fascinante porquanto se funde com a nossa génese profunda e distante como corpo étnico-cultural. 700 anos depois dos Almorávidas terem abandonado o sul do território, repõe-se em Lisboa um “ícone” como mole emblemática dos seus continuadores. O códice, formalista e normativo, censor e liberal, fundamentará as opções estruturais de uma prática em Lisboa, ainda que como proposta formal se mantenha, indissolúvel e continuada, a memória dos tempos passados. Da enfatização determinante, da presença do vazio e da telúrica analogia formal, na Caaba tudo se compõe – com a luz infiltrada pelas reixas, com os brilhos reflectidos e luminosos dos azulejos e estuques, nas paredes de terra crua e queimada, em comparação com a origem despojada – o deserto.

Mas não se abordarão apenas as formas e o que elas transmitem de mais imediato.

Procura-se uma relação entre o que elas representavam e os conhecimentos físicos (empíricos ou não) que a cultura do tempo proporcionava, os materiais de que dispunham, os modos e métodos construtivos que utilizavam, as representações iconográficas e místicas que transportavam, a espiritualidade que emanavam e transmitiam – e é sobretudo essa espiritualidade que é preciso repor, referida a um Novo Mundo, a uma nova realidade que oscila entre outro tempo, outras estruturas sociais, políticas e económicas, com novos períodos de produção, novas maneiras de construir e novas matérias-primas. Trata-se de o conseguir sem menosprezar uma génese filosófica e espiritual. E de conseguir repor uma verdade e uma realidade tão diferentes quão tão próximas de nós, no tempo e no espaço”3.        

 

Na década de 1980, refira-se a agência da Caixa Geral de Depósitos, em Cuba, Alentejo4. Volumétrica e formalmente, pode relacionar-se com os temas da “cultura meridional” já utilizados na Mesquita – a grande caixa cúbica do corpo, de clara presença urbana, abrindo sobre a rua da Vila, e encimado pela semi-esfera da cúpula, cujo extremo superior exibe um “cristal de vidro”, refractor e plasticamente diferenciador. 

 

A lisura do sul. O mar ocre a perder de vista por detrás do vasto carrascal, e, mais longe no tempo, a indomável permanência de uma herança, miscigenação e troca, de credos, modos e costumes, na continuidade formal que o Sol e as latitudes provocaram. 

A urbe, continuação de um entendimento de busca e de raízes ancestrais. Um novo objecto que não pretende o espúrio, antes deseja a depuração de elementos formais, síntese e símbolo de um tempo e de um espaço, não de conquista, mas de entrega de, e para, gentes francas, em formas simples e correntes – volumes cúbicos e calotes esféricas –, diálogos de luz na sombra de recortes exactos, conexões de referência ambivalente entre exterior e interior, até ao coroar zenital prismático, para a viagem.5 

 

Nos anos 1990, outras procuras plásticas e de linguagem surgem nos trabalhos de JPC: é o caso do recurso a elementos da história arquitectónica das raízes modernas e das formas industriais, que são convocados para o projecto da fábrica Fumarmar, em Setúbal6. É um objecto que, embora sem perder a ligação ao mar e à natureza, a estabelece de um modo “objectualizado”, feito de articulações, juntas, tectos metálicos, chaminés e mecanismos, unidos num fundo vibrante de vermelho e cinza, e com um espaço interno que retoma, de algum modo, a lógica (metáfora) do motor. Evocativo também de um tempo ido, nostálgico e de uma epopeia local:

 

Há um encanto mítico no mar. Um encanto poético, histórico e calmante. O nosso encanto. Há um objecto – a referência às memórias da infância quando o avô desvendava o mar e nos ensinava a olhar o pôr-do-sol. Há um cheiro permanente e residual, doce e amargo, o grito estridente das gaivotas e o pulsar das máquinas. Um percurso inebriante e doloroso no início, frenético e ávido no fim, com golfinhos no estuário, os sons e a história das formas. Formas de ver, sentir, misturar, dar e receber.7

 

Obra relativamente singular no contexto dos seus trabalhos, mas de grande aprofundamento e rigor no desenho, é o restauro, remodelação e adaptação do edifício de um antigo solar do século XVI em Viana do Castelo, destinado a Estalagem (1997), no qual a dignificação das densas formas do Manuelino de transição para a Renascença envolve uma cuidada e nova “arquitectura do conforto” nos interiores.

No conjunto “Pátio das Janelas Verdes”8, a fluidez suave dos espaços comuns e de ligação, no plano térreo e nos pisos, alia-se a uma clara articulação com o delicado tratamento paisagístico, em pátio colectivo virado à marginal e ao rio, e a uma conseguida e pormenorizada “teoria de interiores”, em escala intimista, quer na mobilidade da compartimentação e dos vãos quer no adequado desenho de materiais, cores e texturas, conseguindo ao mesmo tempo, concatenar a espacialidade doméstica com a leitura da fulgurante linha ribeirinha.

Na última década, e como obras finais9, refiram-se os projectos para a Parque Escolar, com destaque para a requalificação e ampliação do Pólo D. Filipa de Lencastre (o antigo liceu modernista de Jorge Segurado e duas escolas anexas), no Arco do Cego, em Lisboa10.

Para além de todas as polémicas geradas por este tipo de programas, no trabalho do pólo D. Filipa sente-se o aprofundado cuidado no “trabalhar” o/e com o generoso espaço e os “luxuosos” materiais modernistas do existente (recuperação dos pavimentos e paredes marmóreas do alargado átrio), na procura de um novo conforto interno (no redesenho de salas de aula, de novos espaços e circuitos de ligação), e de uma potenciação de novas áreas e funções (a criação de mais um piso desportivo interno ou a invenção do Auditório no pátio central).

Uma referência final deve ser feita ao seu desejado, enunciado e permanente modo de trabalho (na investigação, no design, na arquitectura, na edição): o da colaboração, sempre aberta e de sentido experimental, com outros colegas. Referiram-se alguns, com quem partilhou o trabalho: António Maria Braga, Diogo Vieira, Manuel Gomes da Costa, Manuel Lacerda, Miguel Pimentel; outros seria ainda necessário referir, incluindo o autor destas linhas – e, neste quadro, a mais duradoura e profícua das relações, no plano da investigação e da edição, a que estabeleceu com Hélder Carita. |

 

 

1 Alexandre Alves Costa. in Portugal: do mar, das pedras, da cidade/Portugal of Sea, Stone and Cities. Lisboa : Ministério da Cultura; GRI – Gabinete de Relações Internacionais, 1996, p. 24-26.

 

2 Com António Maria Braga [projecto: 1978-1989; obra: 1980-1991; inauguração (1ª fase): 1985; Promotor: Comunidade Islâmica de Lisboa].

 

3 João Paulo Conceição. in Límite del Mar. Madrid, [s.n.], 1992.

 

4 Com Miguel Pimentel (projecto: 1985-1986; obra: 1986-1988).

 

5 João Paulo Conceição. In op. cit.

 

6 Com Diogo Vieira (projecto: 1991-1992; não construído).

 

7 João Paulo Conceição. in Portugal do Mar, das Pedras, da Cidade/Portugal of Sea, Stone and Citeis. Lisboa : Ministério da Cultura; GRI – Gabinete de Relações Internacionais, 1996, p. 121.

 

8 Com Manuel Gomes da Costa (projecto e obra: 2004-2007).

 

9 Com ampla colaboração de Manuel Gomes da Costa entre 2007 e 2010.

 

10 Além dos projectos análogos para a Escola Secundária Infanta D. Maria, em Coimbra, e para a Escola Secundária D. Luísa de Gusmão, em Lisboa.


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